Há uns séculos atrás, havia uma série da Netflix chamada Black Mirror. Mesmo que você não tenha acesso a essa plataforma, provavelmente sabe do que falo – e do hype que essa joça gerou.

Basicamente, a série exibe histórias independentes a cada episódio, tendo como norte a tal da crítica social às torturas da sociedade contemporânea, especialmente no que diz respeito aos impactos negativos da tecnologia e da internet sobre as relações interpessoais. Muito do sucesso de Black Mirror vem do fascínio que a ideia de “tapa na cara da sociedade” exerce sobre o público, sedento por afagos no ego. Tanto que, na época, surgiram muitos memes do tipo “Isso é muito Black Mirror” nas interwebs. Mas, como tudo hoje em dia, o hype passou, rápido como um foguete.

Mas, por que eu decidi falar sobre isso agora?

Porque uma certa pessoa também falou sobre os impactos negativos que as tecnologias geram nas relações interpessoais e intrapessoais – o Padre Kentenich.

Mas, diferente de Black Mirror, que só oferece ao espectador uma autoindulgente sensação de não fazer parte dessa massa e de superioridade em relação a esse admirável gado novo, o Pai Fundador quer que nos aprendamos e percebamos a discrepância entre o progresso exterior e o desenvolvimento interior da personalidade, para a interação entre problemas exteriores e evoluções psicológicas negativas que influenciam as ações e decisões humanas.

No documento de pré-fundação, de 27 de outubro de 1912, dirigido aos jovens alunos do Seminário Menor dos Padres Palotinos em Ehrenbreitstein, ele apresenta aos jovens uma crítica social e cultural da época, mas que continua atual:

“Não é preciso ser grande conhecedor do mundo e do homem para constatar que o nosso tempo, com todo o seu progresso, com todas as suas descobertas, não pôde libertar as pessoas do seu vazio interior. É que todas as atenções, todas as iniciativas têm exclusivamente como objeto o macrocosmo, o grande mundo, o mundo exterior a nós próprios (…). O gênio humano dominou as poderosas forças da natureza e submeteu-as ao seu serviço. Alcança qualquer distância na terra, sonda as profundezas do mar, perfura as montanhas da terra e voa pelo espaço. O impulso de pesquisa leva-o cada vez mais longe. Descobrimos o polo norte e descortinamos continentes obscuros, examinámos com raios novos o nosso sistema ósseo, o telescópio e o microscópio desvendam-nos todos os dias mundos novos.

Porém, há um mundo sempre antigo e sempre novo, um mundo – o microcosmo, o nosso próprio mundo pequeno interior – que continua desconhecido e inexplorado.

Não existem métodos, ou pelo menos métodos novos, para iluminar a alma humana. ‘Todos os domínios do espírito foram cultivados, todas as faculdades potencializadas, só o mais profundo, o mais interior, o mais essencial da alma imortal é que continua demasiadas vezes a ser um terreno por cultivar’, lamentam até os jornais. É por isso que a nossa época é de uma pobreza e de um vazio interior assustadores. ”

Poderíamos dizer que as pessoas têm consciência desse estado de pobreza e vazio interior – tanto que elas buscam preencher de diversas formas, com diversas ideologias, modas e hobbies mecanicistas. E a tecnologia é um meio largamente usado, de diversas maneiras, para preencher esse vazio. E o Padre Kentenich alertava sobre o perigo do domínio desse vazio na vida humana.

 “O nosso domínio sobre os dons e as forças exteriores da natureza não andou a par e passo com o domínio das forças instintivas do nosso coração humano. Esta discrepância tremenda, esta brecha incomensurável torna-se cada vez maior e mais profunda – e, se não se conseguir, muito em breve, com toda a força, mudar a situação, encontrar-nos-emos perante o fantasma da questão social, da falência da sociedade. Em vez de dominarmos as nossas conquistas, tornamo-nos seus escravos; tornamo-nos escravos também das nossas próprias paixões.”

O Pai Fundador diz, no entanto, que a tecnologia não é detentora, por si só, dessa culpa no cartório. A responsabilidade por essa escravidão, por assim dizer, é única e exclusivamente humana. Transferir a culpa para o computador, para o celular, pura e simplesmente, é só mais um sintoma do vazio interior e da autoeducação malfeita.

“É preciso decidir! Para a frente ou para trás! Para onde? Vamos então retroceder! Teremos, portanto, que voltar à Idade Média, arrancar as linhas férreas, cortar os fios dos telégrafos, devolver a eletricidade às nuvens e o carvão à terra, fechar as universidades! Não, nunca! Não queremos fazer tal coisa, não devemos fazê-lo, não podemos fazê-lo. Então avancemos! Sim, avancemos na pesquisa e na conquista do nosso mundo interior através de uma autoeducação consciente dos seus objetivos. Quanto maior o progresso exterior, maior o aprofundamento interior. É este o brado, o lema que está a ser propagado por toda a parte, não só entre católicos, mas também no campo inimigo. Também nós, de acordo com a nossa formação, queremos seguir estas aspirações modernas.

O Padre Kentenich afirma que o conhecimento das coisas terrenas deve ser um meio auxiliar da autoeducação. Cabe a nós utilizarmos dessa maneira, ou deixar-se levar por elas, mantendo o vazio interior.

No futuro, já não poderemos deixar-nos dominar pelos nossos conhecimentos, mas temos que ser nós a dominá-los (…). Quanto mais profundamente penetrarmos nas tendências e no desenvolvimento da natureza, tanto mais racional e adequadamente temos que saber enfrentar as forças instintivas e diabólicas no nosso interior. O grau do nosso progresso no domínio das ciências tem que ser o grau do nosso aprofundamento interior, do crescimento da nossa alma. Caso contrário, cria-se também no nosso interior um vazio enorme, um abismo tremendo que nos faz sentir profundamente infelizes. Portanto, autoeducação!

Assim, o Padre Kentenich quer que cultivemos, junto com o nosso progresso externo, o nosso ideal e as aspirações do coração. A sociedade moderna exige isso, quem convive conosco e especialmente aqueles com quem iremos realizar nossas atividades futuras.

E isso é nada Black Mirror.

Sobre o Autor

Líder de Ramo do Jumas Santa Maria (RS) e estudante de Engenharia de Computação na UFSM.